quarta-feira, janeiro 06, 2010

Suporte o que vê, banque o que sente.

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Não conseguia terminar a pintura, estava quente e a tinta pedacenta não parava quieta no rolo e caia toda no chão, não tinha com o que forrar e estava cansado demais pra tomar maiores cuidados, escorregava descalço no chão cheio de tinta, suava em bicas mesmo estando apenas de cueca e tinha fome, fome insolúvel pois os os oito reais que tinha já haviam virado um maço de cigarros, duas coxinhas e uma coca de seiscentos umas quinze horas atrás. Já tinha ouvido todas as músicas que tinha no celular, duas vezes, fora as que deixara no repeat por pelo menos umas 6 ou 8 vezes, “coisa de psicopata” pensava, apesar de nunca ter se esforçado  em provar pra si que não o era, agora então tinha mesmo era que provar que não tinha razão, não tinha vontades, era só uma meta e pra lá rumaria, já não podia mais adiar muitas providências, não podia sonhar e nem ficar viajando, achando que tudo se resolveria, nada se resolveu, agora tinha que acabar definitivamente com isso.

Deitou-se no chão achando que não levantaria mais, suas costas se espalharam na tinta, seus músculos esfriaram, o sangue quis coagular inteiro, fechou os olhos ouvindo Garage Fuzz, ficou pirando nos tempos de moleque quando não tinha esses perrengues pra resolver, respirou fundo e quando a mesmo música começou de novo abriu os olhos, viu o teto todo manchado pela água podre que escorria dos vazamentos no telhado, fechou os olhos de novo e lembrou de quando lixava o forro de madeira da casa dos pais, nessa época ouvia Pixies, Sonic Youth, dez anos depois e estava preso a um teto de novo, com os músculos prontos para arrebentar, com os olhos querendo fechar. 

 Pára! Vamos logo com isso caralho! — Ralhou como se fosse o próprio patrão, se jogou para fora do chão e pegou um cabo de vassoura pra mexer a tinta, não podia parar, nunca pôde, mas hoje é que não pode mesmo.

Mais umas horas e terminou a pintura do teto, olhou pra baixo e o chão estava mais branco que o teto, olhou pra si e estava também mais branco que o teto, mas não conseguiria mais nada naquela noite, partiu pra a lavagem do chão. Tentou raspar com uma espátula as partes mais secas, o que a cada movimento lhe parecia uma burrice maior, então lembro-se que comprara um limpa pedra que diziam surreal, e era mesmo, passou no chão e não conseguiu mais respirar, em volta dele o apartamento aumentava e diminuía de tamanho como se fosse uma sanfona, era soda cáustica e ácido sulfúrico suficientes pra refinar uma tonelada de coca, olhava para as paredes e elas não paravam de se mexer, as formas geométricas negras pintadas nelas tentavam falar algo, parecia um cover ruim dos últimos minutos de Diamond Sea, o rolo ficou mais pesado que a lata de tinta e só deu tempo de procurar um lugar seco pra cair.

Acordou no meio da madrugada ainda tonto, sem saber onde estava, se arrastou até a rua, sentou-se na calçada e olhou pra rua escura e deserta, respirou alguns minutos e entrou pra pegar um cigarro e uma bermuda. Voltou, fumou, acendeu outro na bituca e entrou de volta, pegou uma camisa e voltou pra rua, não pensava direito, estava caindo como se estivesse bêbado, e estava, era estafa, já não adiantava mais continuar, aquilo teria que ser suficiente, chegou no bar ainda tonto, pediu um copo d'água, engoliu sem nem ver e pediu outro, deitou a cabeça no balcão observando os vagabundos que lhe fizeram companhia por tantos anos, taxistas, prostitutas, insanos, traficantes, vagabundos de toda a espécie, olhava-os quase que com carinho, como que satisfeito por esta ser sua última noite ali com eles. Saiu do bar e foi fumar na calçada, sentou-se no chão e olhou pro céu que já tentava amanhecer, olhou para as mãos trêmulas sujas de tinta e queria entender como tinha chegado até ali. Sabia. Tinha aproveitado o que podia, mas agora não daria mais, agora era a hora de alcançar os líderes, um pique para não perder a esperança, olhou para o céu e ele ficava violeta, olhou para as mãos de novo e viu os calos, os machucados, os cortes, a tinta, as verrugas, viu que é velho e novo ao mesmo tempo, viu que merece o que tem porque é teimoso, viu que não tem nada porque gasta as coisas como gasta a si mesmo, todos os dias de cada vez, sabe que seus ossos não quebram com facilidade e sabe que no fundo não precisa sofrer, que cria as próprias dores pra ter sobre o que escrever depois, que chora as perdas pelos outros e não por si, sabe-se objetivo e sabe perder, e como sabe.

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