A atmosfera está parada, pesada, o cheiro fétido da geladeira que eu teimo em não limpar já empesteia o andar todo, acordo e ligo a TV, nada novo, só muda o nome da cretina que passa as receitas, no SPTV eles alternam entre as merdas que acontecem todos os dias na cidade com a prisão de mais uma quadrilha de estelionatários, depois um velho quase cego tentando ao falar bem das merdas de pinturas que faz, aumentar o preço delas e quem sabe conseguir uma exposição numa casa de cultura cheia de mendigos e cheiradores de cola dormindo na varanda toda pichada. E a tarde vai passando a ritmo de tartaruga temperada a feijão estragado e queijo rançoso, até que o telefone toca, pensei em não atender, afinal, deve ser só o banco me explicando que o computador não sabe reconhecer o meu dinheiro, e que o imbecil que me ligou não pode fazer nada, mas que eu preciso passar quarenta minutos no telefone pra explicar para uns cinco outros imbecis que o meu dinheiro já está lá, pra eles devorarem como lobos na pradaria. Resolvi atender, mudei de canal e me deparei com um belo biquíni, podia ser um sinal de um dia melhor.
"Ok então, estou indo praí, se eu não chegar até dar o teu horário deixa na portaria ok?... Ok, tenha um bom dia!" Era uma boa notícia, finalmente eu ia pegar o envelope que mudaria as minhas tardes, depois de meses de humilhação a merda toda chegaria ao fim, era só fazer a entrega e estava tudo certo.
São três da tarde, ainda dá tempo de comer alguma coisa, afinal este era o grande dia. Passo na cozinha e o cheiro de azedo entope a minha cabeça, a pia está cheia e eu não estou com cabeça nenhuma pra arrumar nada, acho um prato meio limpo e sirvo arroz, abro a geladeira e aquele cheiro me ataca como um palmeirense gordo e suado depois de uma feijoada com caipirinha, o cheiro daquela merda faz eu me sentir imundo até dentro das calças, depois daquela porra não tenho mais forças pra comer, vou tomar um banho.
Ligo o chuveiro e os canos velhos cospem aquela porcaria enferrujada por uns quinze minutos, quando entro na água gelada ainda consigo sentir o gosto de ferro entrando na minha pele. O que não te mata te deixa mais forte dizia meu antigo chefe, que grande filho duma puta aquele velho, se ele tomasse um banho aqui ele nunca mais dizia esse tipo de asneira! Saio daquela merda e visto a mesma roupa de ontem já que as outras já estão ensacadas, prontas pro dia do despejo que se aproxima. As roupas até que não fedem tanto, mas o desodorante acabou e vai dar a elas uma prova de resistência que eu preferiria não presenciar, mas não posso.
Cigarros, carteira, celular, chaves, é só, quero andar leve por aí hoje, sem distrações. Desço as escadas animado, afinal aquilo tudo tinha data pra terminar afinal, e a data era hoje. Vou até o ponto de ônibus, entro e quando passo da catraca percebo a merda que eu fiz, afinal, o Largo da Batata não é o melhor lugar pra se passar num final de tarde, desço do ônibus e pego outro, pela Paulista, num dia como esse não dá pra ficar sem passar pela Paulista. Agora assim no calor do momento, eu posso jurar pra você que não teve um dia memoravelmente bom nessa vida que eu não tenha passado pela Paulista, mesmo que só por uns poucos minutos, claro que tive dias do caralho em Floripa, em Curitiba, no Rio, em Minas, mas qualquer dia longe dessa porra de cidade é bom, não precisa de muito esforço.
Desço na Paulista, dou uma fungada naquele cheiro de mijo e ar condicionado e sigo pra Nove de Julho, desço aquela ladeira deprimente da FGV e caio no ponto de ônibus. Não demora e vem o expresso do Cão, o Terminal Santo Amaro, o ônibus com as pessoas mais feias e mal educadas que o JC colocou na órbita. Entro e de cara já tem um time de futebol cheio de ranho na porta, as gordas que ostentam os futuros traficantes da minha antiga neighborhood não dão um passo pra facilitar a passagem, e com o empurra-empurra da massa entrando no ônibus em segundos já é impossível ouvir qualquer coisa além dos gritos agudos e estridentes do futuro do país. Vou para o fundo e me sento entre o sanfonado do ônibus e a última porta, olha para o asfalto e fico hipnotizado pelas faixas passando quase todas com marcas de pneu enquanto sinto os olhos de uns caras passando da minha cara para as minhas mãos e os meus bolsos como se fossem um scanner.
Sentado ali com os chacais me rondando eu lembrava da minha adolescência, alucinado por diversão, com uma bela guria, sexo abundante, amigos em cada esquina dessa pizza escrota e fodida que é São Paulo, viajava a cidade toda como office-boy, comia incontáveis cachorros-quentes durante todo o dia e tinha dinheiro para cada um deles, para cada uma das cervejas que eu tomava, cada paranga, cada espelunca que me oferecesse música alta e vadias sedentas, e como havia vadias nessa cidade, se eu me concentrar bem posso até ver um seio que tenha me sido ofertado pra chupar em algum beco escuro da Vila Madalena ou do Socorro, caralho que época fodida de boa! Hoje tenho uma boa formação, experiência profissional, um passaporte, uma faculdade, uma pilha de diplomas de cursos e palestras imbecis e não tenho dinheiro nem pra comprar um maço de cigarros, cadê a merda do país do futuro que não chega logo!?
Desci do ônibus num pulo, os filhos da puta tentaram descer junto, mas a porta fechou antes e prendeu o braço de um deles. No caminho pra pegar o envelope eu passo pela casa de duas minas que eu conheci antes de ficar duro, uma delas, segundo o que eu ouvi esses dias num bar está assaltando velhinhas no Largo Treze e usando a grana pra comprar crack, a outra está bem, descobriu que é lésbica e me odeia um pouco menos hoje, considerando nosso último encontro quando ela me deu uma cotovelada.
Enfim cheguei, o lugar tem uma portaria suntuosa, piso de mármore, seguranças armados, olhando de fora nem parece que eles são tão incompetentes. Chegando lá eu peço pro segurança pra falar com a Ana, que é quem está com o pacote, ele finge que não ouve e eu preciso repetir, mais alto. As pessoas em volta me olham torto, como se eu estivesse numa maternidade, enfim o cara ouve e se vira na minha direção. “Ramal 5060, liga aí!” Ok, ok, não vou estragar o dia por causa de um filho da puta qualquer, ligo no 5060 e nada, ninguém atende. “Aê campeão (tem que incentivar né!), ei, campeão! Ninguém atende, tem outro número pra eu ligar?” Depois de uns vinte segundos ele resolve virar a cadeira e pega a lista de ramais, ele analisa aquela porra como se estivesse em chinês, franze a testa, se coça, seca o suor da testa e depois de uns dois minutos “ah, tenta lá no 5061!” Tento no 5061, nada ainda, tento nos outros ramais que eu já conhecia, nada. “Ei campeão, não dá pra eu entrar e procurar a pessoa?” Ele me olha, pelo jeito ele se enfezou porque agora ele até se levantou. “Aí, se ela não atende que diferença faz você ir lá, volta outro dia!” Ele falou na maior naturalidade, se virou as costas e voltou pra cadeira. Quando eu pensei em dizer ou fazer alguma coisa aparece uma galega daquelas de fechar o bar, ela desce de um desses carros bem baixos, esportivo, sabe aqueles com o nome cheio de letras e números? Então, ela desceu com um daqueles terninhos combinando com a saia, chegou na portaria e ligou, no segundo toque “Ana, oi! Aqui é a Andréa, você já está com os meus papéis?... Ok querida, vou te esperar aqui na portaria mesmo porque eu to super apressada, beijo.”
Fiquei estático, com o cigarro na boca e o isqueiro na mão eu fiquei lá, estático. Ela deu dois passos para trás, pegou o cigarro na bolsa e acendeu, olhou pra mim enquanto dava o primeiro trago e perguntou “quer fogo?” como se estivesse dando o gole do santo, sem nem saber se eu estava mesmo ali. Pra não gaguejar eu fiz que não com a cabeça e acendi o cigarro. Eu estava morto, começou a garoar e esfriou uns dez graus no tempo entre ela acender o cigarro dela e eu acender o meu, e foi depois de acender o cigarro que eu olhei pro relógio da rua e vi que eu estava de pé ali já fazia quase meia hora, então pensei em me sentar na calçada, mas com uma escultura daquelas na minha frente fiquei intimidado, afinal posso ser meio descuidado e estar com cheiro de ferrugem, mas pelo menos eu tinha que manter algum brio, afinal essa merda de cidade sempre foi cheia de surpresas.
Lá pelo segundo trago dela e o sétimo meu aparece a Ana, num conjuntinho perfeitamente igual ao da louraça, só que de outra cor. Ela chamou a outra, Andréa, não posso me esquecer, entregou uns papéis, trocaram uns dois minutos de conversa mole e se despediram, quando a lourona veio eu não consegui não olhar, e olhei-a indo até o carro, quando olhei pra de volta pra portaria a Ana já estava quase sumindo no corredor, então tive que gritar o nome dela e abanar as mãos feito um retardado e como não poderia deixar de ser todos me olharam com o olhar de repulsa da outra hora, inclusive a alemoa que já estava dentro do carro, mas pelo menos a Ana ouviu, ouviu, se virou e veio em passo de tartaruga, quando ela chegou eu me senti um idiota de vez quando ela me perguntou “o que foi, pra que tudo isso?”. Então me apresentei e disse que estava lá atrás do envelope, ela me olhou com cara de menosprezo e me pediu pra esperar mais um pouco.
Eu fingi que não sabia o que era “mais um pouco” e continuei de pé, por mais meia hora. Enfim aparece ela de volta com aquelas pernas enormes e lentas, me entrega o envelope e diz que precisa de um feedback (detesto quem usa essa palavra) o mais rápido possível, o que nem merece resposta, apenas um “ok, até mais”.
Saí de lá sem olhar pra trás como quem sai da boca de fumo pela primeira vez, depois que virei a esquina pulei, corri um pouco, pulei de novo e assim foi, alguns socos no ar e eu já estava farto de comemorar, eu precisava de um cigarro, precisava passar no banco e procurar algum dinheiro, olhei o relógio da rua e percebi que tinha ficado mais de uma hora por lá, sem bancos a essa hora. Fui na direção do shopping pra caçar um caixa eletrônico com os olhos vidrados no que eu tinha em mãos, peguei as ruas mais tranqüilas que encontrei, atravessei a rua em todas as poças d’agua, segurava mais forte o envelope a cada pessoa que me cruzava na rua pois nada, nada poderia estragar aquele momento.
Cheguei no shopping, perguntei pro segurança e fui na direção dos caixas eletrônicos do estacionamento do pico. Eu andava pelos corredores do shopping como se fosse o príncipe da Dinamarca, sabe aquelas pessoas que não precisam sorrir nunca pois a satisfação pode ser notada na pupila dos olhos? Pois é, esse era eu, cantando a perfect situation do Weezer bem baixinho, só pra mim mesmo. Cheguei no caixa eletrônico já com o gostinho do cigarro entre os lábios, pus o cartão, digitei a senha, recusei o seguro 24h, digitei a outra senha, escolhi o valor, pouco pois não precisava de muito pra ficar completamente satisfeito, só um cigarro, um expresso talvez, toca o telefone, deve ser alguém querendo saber se eu já tinha conseguido o envelope, coloquei o envelope no porta-treco do caixa e atendi, era engano, no caixa aparece SALDO INSUFICIENTE, “como assim saldo insuficiente!!!! Essa porra desse banco é uma bosta mesmo!!!”, quando penso em chutar caixa olho pro lado e cadê o envelope? Presto bem atenção e percebo que não havia porta-treco algum ali, apenas um buraco, um fino e inconveniente buraco. Olho por ele e consigo ver o envelope, me desespero, tento por a mão no buraco, tento empurrar, puxar, empurrar, puxar, quebrar, abrir... nada. Começo a me desesperar de verdade, o ar me falta, as mãos tremem, não consigo ver direito pois está tudo turvo, e o caixa apitando e dizendo SALDO INSUFICIENTE, SALDO INSUFICIENTE, SALDO INSUFICIENTE!!!! Olho em volta e vejo apenas um segurança olhando pra mim, algo me diz que se eu puxar uma peça metálica do caixa eu consigo chegar até o envelope, eu consigo vê-lo, ele está a uns quarenta centímetros de onde a minha mão alcança, mas algo me diz que o segurança não vai gostar nada de me ver quebrando aquela bosta, olho pros lados louco, alucinado pensando em tudo que eu passei pra conseguir aquela merda de envelope, e olha que aquela não era minha primeira incursão em busca dele, eu já estava a meses sendo humilhado e jogado de um lado pro outro pra provar que eu podia tê-lo e em duas horas com ele eu provo que não mereço, em duas horas eu estraguei o trabalho e a esperança de meses, falo com o segurança e ele me diz que só dá pra pegar quando o carro-forte passar, o que vai ser em uma ou duas semanas pois ele tinha passado naquela mesma manhã. Perguntei pra ele se não tinha outro jeito e ele me diz que não, pergunto de quarenta formas diferentes pra ver se ele entende e ele me diz que não tem outro jeito, começo a ficar louco de novo, minha cabeça começa a esmagar meu cérebro enquanto eu entro e saio do caixa eletrônico vendo o envelope ali, a centímetros das minhas mãos, mas eu não posso mais pegar, penso em mil possibilidades, vou na caçamba de uma obra pela qual passei no caminho do shopping e pego um arame, arrumo também fita adesiva mas nada tira aquela porra daquele envelope do buraco.
Sento no chão e é como se meu pulmão não recebesse mais oxigênio nenhum, a garoa aperta mas não chega a me incomodar enquanto me olho na poça d’agua e percebo que a veia na minha testa está pulsando, vejo tudo o que eu tinha planejado, tudo o que eu podia fazer simplesmente caindo atrás do caixa eletrônico, e eu não posso pegar, eu não consigo, eu não tenho forças. Olho em frente e a lorona, a Andréa vem na minha direção, não faz mais diferença estar sentado no chão, ela entra na fila do outro caixa, quando percebe que eu sou o otário que não tirava os olhos da bunda dela a duas horas atrás franze a testa como se aquilo fosse um cumprimento e se vira como quem quer apenas evitar qualquer outro tipo de interação, eu volto com a cabeça para o meio das pernas e continuo a tentar respirar, sem muito sucesso.
Penso em chutar, xingar, gritar, chorar, penso em como poderia e/ou deveria ter feito isso em outros momentos do dia, penso na minha vida, nas dívidas, nas perspectivas, penso em como o conteúdo daquele envelope se encaixava como uma luva num final feliz pra essa história e pra tantas outras que eu ainda pretendia escrever, pensei no que faria se conseguisse o que pretendia tendo aquele envelope em mãos, pensei em tudo isso no trem, depois no ônibus, depois da van, na porta de casa, no chuveiro, na cama e agora penso aqui, penso, olho para os lados e digo bem baixinho, só pra mim... “preciso parar de fumar.”
quarta-feira, novembro 08, 2006
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Um comentário:
ok.
Vou publicar o que já tenho.
A viagem
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