Eu e minha namorada sempre tivemos nossas briguinhas, mas que casal não tem não é? Muitas vezes brigávamos feio, de bater porta e não nos falarmos por dias. Violência nunca, abomino isso, e ter quase oitenta quilos me mantém quase imune a uns sopapos, apesar de já ter recebido alguns, mas isso já outro lance.
Estávamos numa espiral de brigas interminável àqueles tempos, éramos pessoas ocupadas, trabalho, eu ainda estudava à noite e como profissionais das humanidades, tínhamos que manter contato próximo com alguns colegas mais influentes, o que na verdade não era sacrifício algum, afinal, redações de jornal, agências de fomento cultural, produtoras de arte e estúdios de fotografia sempre foram lugares povoados de pessoas divertidas, e gostávamos daquela vida agitada de cidade grande, cheia de festas, jantares, vernissages, exposições e bares da moda.
Porém, com o tempo começamos a nos desencontrar, já não dávamos conta da vida a dois, aliada àquela vida louca de Engovs e olheiras. Começamos a nos ver cada vez menos, e a cada passo que a relação dava nesse sentido as brigas só faziam aumentar, em quantidade e qualidade, chegamos ao cúmulo de brigar lado na cama ou por nomes não ditos; e foi aí que resolvemos colocar regras de convivência, nada demais, não era uma cartilha nem nada do tipo. Começou na verdade de forma bem singela, depois de uma comida de rabo depois do terceiro atraso no trabalho em uma semana (e era quinta-feira) veio a primeira regra, em forma de desabafo, por e-mail mesmo, a fim de evitar que aquilo se transformasse numa pauta, era simples, ela escreveu “não faremos mais sexo pela manhã, e quando o despertador tocar é porque é hora de acordar”, nada muito drástico, só era necessário para que ambos mantivessem seus respectivos empregos. Seguimos a lei à risca, era um sucesso institucional.
Porém este nem mesmo era um motivo de briga, e com o tempo tinha potencial de se tornar um novo motivo. Numa conversa inocente de MSN veio então a segunda regra, também nada sério, era algo como “se sairmos separados e formos dormir juntos, o mínimo antes de cair na cama é escovar os dentes, quando um banho não for requisitado pelo bom gosto”. Vai dizer que não é justo? Isso era um motivo potencial para brigas, apesar de nunca ter suscitado nenhuma. O problema com essa regra era justamente esse, apesar de seu fundamento jurídico e prático justíssimo e alinhado com as leis mais básicas da convivência humana, ela tinha um vício de jurisprudência, já que normalmente dormíamos juntos na minha casa, e como ela se recusava a manter uma chave, então eu sempre chegava antes, assim sendo, a regra tomou um tom de crítica, sinceramente até o era, então, como era de se esperar, na próxima briga que pode ter começado com qualquer trivialidade como um arroz queimado ou um presente quebrado (bibelôs são frágeis exatamente para serem quebrados e substituídos, isso mantém a dinâmica do casal realmente dinâmica) então que veio a requisição de uma retratação a respeito da regra, ela foi discutida exaustivamente e por fim ratificada.
Se você conhece São Paulo ou assiste o Jornal Nacional, mesmo que de vez em quando, então você sabe que a cidade tem seis milhões de automóveis, e que eles não costumam passar dos 15 km/h, a não ser quando eles capotam na Marginal ou na Bandeirantes. Não gosto de dirigir, é fato, e pular de ônibus em trem e de trem em metrô sempre me pareceu bastante mais lógico do ponto de vista ambiental, de custo de vida, de saúde (estou falando do estresse), isso sem falar que eu tenho pavor de dirigir. Pois bem, vez dessas resolvi visitar um grande amigo que acabara de ter um filho e uma grande publicação, ele resolveu dar um churrasco e eu me prontifiquei na hora, apesar de ele morar literalmente do outro lado da cidade, como não poderia deixar de ser. Ela teve que trabalhar, o que acontece bastante com ela. Já à noitinha ela me liga “tu vens jantar comigo?/jantar não, come que eu to saindo daqui em seguida e vou te ver”. Cerveja, carne, amigos queridos e o bebê cor de rosa dispensados, com a pressa que a ocasião pedia (sinceramente não muita, já que não pretendo voltar ao Jd. Sabrina tão cedo (Só um adendo sobre a vida em Sampa: Se alguém te convida pra ir num lugar chamado “Jardim” desconfie, se o segundo nome for nome de mulher então, te prepara para viajar pela cidade)) me fui, uma hora de ônibus e mais meia horinha no metrô e eu já estou quase lá, então o telefone toca “to cansada, nem precisa vir”... mas... e a ... bem, no dia seguinte abri o e-mail e uma nova regra, menos pontual, mais de conduta, “meu tempo não é merda, não trate-o desta forma”.
A gente resolveu depois de um tempo morar juntos, pra tentar amenizar as brigas e dar uma nova qualidade para a convivência, uma chance pro amor vencer, porém as regras não deixavam de surgir, daqui e dali, “não peidar na frente dos meus pais”, “anal só em data especial”, “esse tênis você guarda pra quando eu estiver fora do estado”, “quem lava a louça escolhe o filme/DVD”, "não fumar no quarto", “na lua cheia não me enche”, isso sem falar nas posses, algo muito importante na sociedade atual, “essa escova de dente é minha”, “os meus enlatados estão com um “J” escrito em cima”, “não usa meu chinelo”, entre outras regras básicas que nenhum casal pode viver sem como “não coloca essa mão úmida na minha progressiva”, “não xinga o meu primo, ele é gay sim mas ele pisca pra você por causa de um tique que ele tem a anos”, “se um CD está fora da caixa é porque ele não é importante, então eu vou jogar fora”... Depois de algum tempo já não se repetiam as regras, primeiro surgiu o “lembra do que a gente combinou”, mas depois mesmo isso se tornou obsoleto e nos entendíamos quase que exclusivamente por sinais, o favorito dela era o olhar cortante, o meu era estalar língua contra o céu da boca e levantar a sobrancelha direita.
Mas mesmo assim ia tudo bem, tínhamos nossos empregos, a casa, as roupas, os corpos e tudo mais em perfeita higiene e ordem, conseguimos comprar todos os utensílios domésticos do fast-shop depois que eu parei de gastar com cigarro e ela com o chocolate, éramos enfim um casal feliz e saudável.
Kafka era casado?
Kafka era casado?
7 comentários:
leia: Cenas de um Casamento no Campo, de 1907.
sua namorada deve ser uma megera!!!!
Predo, meu querido. É sempre um prazer ler seu blog!
“quem lava a louça escolhe o filme/DVD”...essa é realmente boa e eu nunca tinha pensado nisso!
bah...que visão podre a do personagem!
Kafka noivou, mas nunca chegou a casar. Nem quando se apaixonou por aquela polonesa.
Quis se casar com ela, mas se sentia angustiado demais pra dar um vida alegre a mulher que amava!
"O que eu sofrerei, o que ela sofrerá - nada disto se pode comparar com o que sofreríamos em comum".
não se preocupe, quando ela perder peso o anal se tornará mais fácil, ela vai conseguir e você também !
CAra, mea culpa! Abração. Com certeza esse tal de Vila Sabrina é longe pra caramba. Abração velho!!!
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